Um grão de café flerta com a morte pelo menos três vezes antes de chegar à nossa' xícara. A primeira, no pós-colheita, quando ocorrem fermentações indesejadas durante a secagem. A segunda, na torra, que em geral é excessiva e destrói propriedades como doçura e frescor. E a terceira, na extração, quando máquinas desreguladas e profissionais mal treinados podem enterrar de vez as qualidades da bebida. Esses exemplos são usados pelo cafeicultor e educador mineiro Bruno Souza para enfatizar a importância de todo o processo.

Esse conhecimento virou tema de discussões apaixonadas. É o que estudiosos chamam de a "terceira onda do café". A bebida, que tem como característica primordial a capacidade reanimadora - e deu nome a estabelecimentos onde funcionava como ela de relacionamentos -, hoje passou a despertar tamanho interesse nos consumidores que a paixão muitas vezes beira o fetichismo. Não é raro encontrar em cafeterias jovens ostentando tatuagens de xícaras, cafezais e até moléculas de café. O ato simples de tomar um cafezinho ficou para trás. O consumidor quer saber a procedência, o tipo de grão e que sensação a experiência irá lhe proporcionar. O fenômeno é mundial, e foi impulsionado por redes de cafeterias que passaram a utilizar grãos mais nobres, da espécie arábica, e a oferecer, além de maior variedade, ambientes confortáveis que favorecem o convívio e a socialização.

O salto qualitativo fez surgir uma nova classificação, o Café Especial (ou Specialty Coffee, nos EUA), que vai além da simples "gourmetização" e se tornou alvo de produtores. Para obter esse novo status que aos poucos se torna uma exigência de consumidores e torrefadores, não basta vencer os inimigos descritos por Souza. Devem-se cumprir requisitos que vão desde origens e características físicas dos grãos, como tamanho e cor, até fatores ambientais, como produção e relação com a mão de obra. É preciso se submeter a sistemas internacionais de pontuação, concursos e, quem sabe, ser mencionado em publicações especializadas como "Roast Magazine", "Barista Magazine" e "Coffee Review".

Souza faz parte de uma família do cerrado mineiro envolvida com cafeicultura há quatro gerações e é um dos responsáveis pela recuperação da imagem do café brasileiro no exterior. Em 2002, viajou para os EUA para conhecer o mercado americano contribuindo para que torrefações mais famosas, como a Intelligentsia, de Chicago, aumentassem significativamente seu consumo de grãos brasileiros.

Quando Souza retornou ao Brasil, em 2011, criou a Academia do Café, em Belo Horizonte, um espaço com tecnologia de ponta para formação técnica com certificação da SCAA (Specialty Coffee Association of America).

Na Califórnia, numa feira da indústria cafeeira, Souza conheceu outro brasileiro com papel importante para a mudança de hábitos no consumo do café. Embora sua família estivesse envolvida no ramo cafeeiro desde o século XIX, Marco Suplicy (foto: montagem P1 / reprodução Facebook) só estreou na cena paulistana em 2003, quando abriu a cafeteria que leva seu sobrenome. Adotou parâmetros como foco na qualidade da bebida, treinamento de baristas e torra da matéria-prima com sistema "on demand". Além disso, propagou o conceito de microlotes - pequenas produções vindas de diferentes fazendas, colhidas em condições excepcionais. Há dois anos, capitalizou a empresa admitindo um grupo de investidores e concentrou sua atuação na garantia da qualidade e na distribuição para as lojas da rede que já passam de uma dezena e chegaram aos principais aeroportos brasileiros.

Embora o crescimento pareça inevitável para quem quer se manter no topo de qualquer atividade comercial, a carioca radicada em São Paulo, Isabela Raposeiras (foto: montagem P1 / reprodução Facebook), tem se destacado com apenas uma loja do seu Coffee Lab, na Vila Madalena. Ali funciona uma cafeteria com microtorrefação e espaço para cursos que ensinam desde como preparar café em casa até segredos da torra para profissionais.

Isabela aproximou alunos e clientes. Um deles, o torrefador norueguês Tim Wendelboe, esteve em São Paulo recentemente para uma sessão de "cupping", o ritual de provas onde se pode fazer sucções ruidosas sem ser visto como mal-educado. A degustação ocorreu no estúdio da Fazenda Ambiental Fortaleza (FAF), em São Paulo, onde o produtor Felipe Croce (foto: montagem P1 / reprodução Facebook) apresentou mais de uma dezena de variedades. Aos 35 anos, o norueguês já tem três livros publicados e títulos de campeão mundial de baristas em 2004 e de degustadores em 2005. As amostras sorvidas em pequenas colheres suscitaram observações que fariam um enófilo se sentir intimidado. São aromas florais, cítricos, químicos e láticos, que, entre centenas de outros, têm relação com o terreno, a variedade e o processo de secagem. Wendelboe enalteceu alguns exemplares, solicitou amostras e não deixou de criticar a qualidade da água utilizada, substituída pelo anfitrião por outra mais leve. Na sua cafeteria em Oslo, ou em lugares "hypados" de Tóquio ou Nova York que servem seus cafés, pode-se apreciar suas criações, muitas vezes originárias de um "terroir" específico. A água conta muito. Isabela elogia a água da Noruega. O chef dinamarquês René Redzepi serve os cafés de Wendelboe no seu restaurante Noma, eleito quatro vezes o melhor do mundo pela revista inglesa "Restaurant".

O perfil de torra conhecido como nórdico não é unanimidade, no entanto. Para alguns críticos, a matéria-prima é subtorrada, o que gera acidez exagerada no paladar. Croce diz que não existe um estilo melhor que o outro. Além de Wendelboe, ele vende para torrefadores como Blue Bottle, do Oregon, e Coutume, de Paris, que produzem resultados diferentes a partir do mesmo grão.

Criado em Chicago, nos EUA, onde viveu quase duas décadas, Croce está à frente de um negócio de cinco gerações, localizado em Mococa, Sul de Minas Gerais. Aos 27 anos, é responsável pela presença de cafés em quase 30 países.Em São Paulo, aos poucos, surgem novos empreendimentos, geralmente tocados por jovens egressos do Coffee Lab, Suplicy, Santo Grão e Octavio Café. Um deles é o Sofá Café, que, com apenas dois anos, já está entre os três melhores da cidade. Recentemente, o engenheiro florestal Diego Gonzales, proprietário da casa, surpreendeu os competidores com a abertura de uma unidade em Boston, nos EUA, além das três que já tem por aqui. Para uma cidade que tem o café como sinônimo de sua história, a nova onda ainda é discreta em relação a grandes centros, como Nova York, Londres e Tóquio.

Até Paris, que até recentemente era criticada pelos seus cafés, concentra hoje uma boa quantidade de jovens torrefadores. Em Roma, no Sant’Eustachio Il Caffè, pode-se provar "blends" da variedade arábica vindos do Brasil e da América Central. O proprietário, Roberto Ricci, reforça o fato de que o crescimento da Starbucks estimulou os donos de cafeterias a melhorar a qualidade dos produtos. Para ele, é preciso respeitar a cultura local. O amargor, que muitas vezes é criticado nos tradicionais espressos, precisa apenas ser equilibrado, pois faz parte do paladar deles, diz.

Se a Starbucks tirou os proprietários de cafeterias da acomodação, a Nespresso fez sua parte com os consumidores quando apresentou uma solução prática e visualmente limpa, conferindo sofisticação ao ato de preparar e oferecer uma gama variada de cafés em casa. Recentemente em Belo Horizonte, no Salão Internacional do Café, o especialista belga que vive em Barcelona Kim Ossenblok, conhecido pelo blog Barista Kim, fez uma palestra para um auditório lotado.

O engenheiro químico e "coffee hunter" Ensei Neto (foto: montagem P1 / reprodução Facebook), que já fez parte do comitê de normas técnicas da SCAA (Specialty Coffee Association of America), diz que ainda veremos nossos melhores grãos ficando mais por aqui. Seus cursos recebem profissionais que querem se enquadrar em novos patamares de qualidade. E sua voz é a voz da maioria dos militantes dessa revolução cafeeira. É preciso questionar algumas convicções e desmontar mitos, como o de que o café amargo é forte, o forte é bom e assim por diante. Não é fácil - é cultural e, sobretudo, emocional, já que ao longo da vida construímos memórias gustativas e olfativas que nos remetem a sensações de bem-estar, e nos apegamos a elas.