Foto: Vitor Barão/Café Editora
Florada é época de celebrar não apenas a beleza e o perfume que encanta tudo o que toca, mas também o prelúdio de uma safra farta. Afinal, a produtividade de cada planta é medida de acordo com o número de flores em cada galho. Quanto mais flores, mais café! Os corações mais carrancudos se alegram ao ver a beleza de cada pétala brotar em sua propriedade. E é assim que, em sua delicadeza, o movimento de mulheres do café começa a florescer nos quatro cantos do mundo.
Onde há mulher no comando, há produtividade e desenvolvimento socioeconômico. E isso quem diz é o relatório publicado em 2013 pela Organização de Alimento e Agricultura das Nações Unidas (Food and Agriculture Organization of the United Nations — FAO). “As mulheres [...] desempenham um papel fundamental no apoio às suas famílias e comunidades para alcançar segurança alimentar e nutricional, gerando renda e melhorando os meios de subsistência rurais e o bem-estar geral”, diz o documento.
Equidade de gênero se tornou palavra de ordem em diversos setores e isso não poderia ser diferente na indústria cafeeira. Preocupados com a possibilidade de faltar café no mercado nos próximos cinquenta anos, diversas instituições, ONGs e empresas estão se mobilizando para elaborar soluções. Investir na qualificação das mulheres do café, promover posições de liderança e inseri-las como tomadoras de decisão são alguns dos caminhos defendidos.
Por isso, órgãos internacionais, como o Instituto de Qualidade do Café – Coffee Quality Institute (CQI), responsável pela certificação Q-Grader, posicionaram-se. “Ignorar a igualdade de gênero é uma oportunidade de negócio perdida. A indústria global do café não pode permitir que as habilidades profissionais das mulheres sejam desperdiçadas durante uma época em que tentamos resolver desafios monumentais, que ameaçam o fornecimento de café de qualidade e a prosperidade do mercado”, diz o texto do site do programa de equidade de gênero do CQI.
A ideia é nobre, mas ainda está longe da realidade. “As mulheres enfrentam problemas extras, cada uma em seu nicho. Em geral, elas não estão em treinamentos, cursos e não têm posições de liderança para votar em políticas públicas ou de financiamento”, explica Josiane Cotrim, idealizadora da IWCA Brasil. Muitos alegam falta de engajamento por parte das mulheres, “mas será que condições favoráveis estão sendo criadas para elas participarem mais?! O treinamento é feito num horário em que ela pode ir?”, questiona Josiane.
A falta de representatividade se reflete em todos os segmentos da cafeicultura e isso pode ser notado nas sutilezas. Faça um exercício e comece a prestar atenção nas grades de palestrantes de eventos, em fotos oficiais de instituições públicas e privadas e em atividades oficiais do mercado. Notem que são raras aquelas mulheres que negociam os cafés que produziram, baristas são minorias em campeonatos nacionais e internacionais e profissionais competentes quase não aparecem em outros setores, como ciência do café, torrefação, empreendedorismo. Isso significa que elas não existem? Não. Elas estão lá, fazendo o trabalho que ninguém quer fazer, longe dos holofotes.
Esse é um legado herdado do passado. Segundo a historiadora Ana Luiza Martins, a importância da mulher no desenvolvimento da cafeicultura brasileira nunca foi registrada em documentos, recibos nem contratos. Tudo estava no nome do marido ou do filho mais velho. Por isso, o trabalho dela não existe oficialmente. Quando, na verdade, ela não só “ajudava” na receita da família, mas também se dedicava às atividades extras, como a horta da casa.
Quando mencionadas em registros, elas surgem como imagens estereotipadas. Segundo Ana Luiza, autora do livro História do Café, há certa fantasia sobre as mulheres da elite cafeeira. Alguns viajantes estrangeiros, por exemplo, escreveram em seus diários que as mulheres dos cafeicultores não faziam absolutamente nada. Só ficavam em casa cuidando das crianças. "Esse ficar em casa significava cuidar de uma vasta escravaria. Quando os maridos se ausentavam — o que era muito frequente por causa de viagens a Santos para exportar café ou para abrir novas terras — eram elas que cuidavam de toda a produção", explica.
Foto: Vitor Barão/Café Editora
Atualmente, essa herança está pesando nas relações interpessoais e até representa prejuízo nos negócios. Segundo relatório da ONU Mulheres, igualdade de gênero significa mais negócios e pode adicionar US$ 12 trilhões ao crescimento mundial (*info da Mckinsey & Co.). Mas que raio é essa tal de igualdade? Falando de forma bem simplista, significa que homens e mulheres possam ter os mesmos privilégios, oportunidades, e que tenham o mesmo peso nas tomadas de decisões.
Com isso em mente, algumas atividades de capacitação de mulheres começaram a ganhar força em sindicatos rurais, associações e cooperativas, num passado recente. Esse é o caso do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Estado de Minas Gerais (Senar), onde a qualidade dos cafés foi melhorando gradualmente quando as esposas começaram a frequentar os cursos de qualificação com seus maridos. “Workshops voltados para a família rural mudaram completamente a vida dessas mulheres. Agora, elas conhecem melhor o produto e sabem negociar com mais segurança”, explica Silvana Novais, gerente regional do Senar.
Em alguns encontros e treinamentos dedicados à família de produtores, questões como empreendedorismo, administração de negócios e marketing são abordadas também. Assuntos de cunho social, como violência doméstica, alcoolismo e consumo de drogas em zonas rurais são discutidos por assistentes sociais e psicólogos de forma informativa. O resultado é uma mudança gradativa de comportamento, em que o conceito de agricultura familiar está ganhando outras proporções. Nesse novo entendimento, a mulher se vê como sócia na empresa rural.
Nesse formato, cada membro tem sua responsabilidade em diferentes fases da produção e todos decidem juntos os rumos da propriedade. “O empoderamento feminino pode assustar, pois as pessoas desconhecem o conceito. Na agricultura familiar, por exemplo, as decisões mais acertadas são aquelas tomadas em conjunto”, completa Josiane Cotrim.
“Por serem mais cuidadosas, as mulheres geralmente se ocupam de processos pós-colheita essenciais para a qualidade sensorial do lote. Os terreiros de seca são gerenciados com cuidado por elas, e o resultado já é notado na xícara”, conta o pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), Sérgio Parreiras Pereira. Segundo ele, é importante reconhecer as habilidades de cada um e tratar a todos de igual para igual. “É por isso que sempre apoiei a missão de instituições como a IWCA Brasil, desde o começo”, completa.
Rainhas dos concursos de qualidade
Pontuações inéditas e ótimas colocações em concursos de qualidade nacionais e internacionais foram muito celebradas na safra de 2017. Só no Cup of Excellence (COE), foram oito mulheres recebendo os louros por seus trabalhos. Nunca se viu tanta produtora subir nos palcos de cerimônias para receber o merecido reconhecimento.
Simone A. Dias Sampaio Silva, produtora do Sítio das Oliveiras, é um exemplo disso. Conquistou o quarto lugar no COE e coleciona 27 premiações ao longo de sua história. “Destes, sete eram de primeiro lugar, e, em 2017, fui coroada com o cupping do Senar anunciado durante a SIC”, conta, orgulhosa. Filha de cafeicultor, Simone herdou as terras e hoje administra quinze hectares de café. Além da lavoura tradicional, ela cultiva talhões experimentais, com mais de 200 varietais em parceria com a Emater.
Daniella Pelosini, produtora do Sítio Daniella, em Pardinho (SP), obteve ótimas colocações desde 2013, quando foi finalista do 2º Concurso Estadual de Qualidade do Café de São Paulo na categoria Natural. De lá para cá, já faturou o primeiro lugar do Prêmio Ernesto Illy de Qualidade do Café Para “Espresso” em 2016 e 2017, e foi buscar um desses troféus no prédio da ONU, em Nova York.
Daniella Pelosini, produtora do Sítio Daniella, em Pardinho (SP) - Foto: Felipe Gombossy
Esse fenômeno é o resultado de um trabalho lento de conscientização e programas de qualificação que começaram há um tempo. “Acho importante ressaltar que a IWCA fortalece a confiança da mulher através de encontros, palestras e oficinas. Isso nos faz acreditar que somos capazes e que somos muitas mulheres envolvidas em toda a cadeia”, conta Simone, do Sítio das Oliveiras.
Ao contrário de Simone e Daniella, Maria Aparecida Maciel Gomes não é proprietária de suas terras, mas vive do café. “Eu arrendo 1,5 hectare no Sítio da Torre aqui em Japira (PR), e 40% do lucro da venda dos cafés nessa área é meu”, explica a produtora. No total, são 4 mil pés de café das variedades catuaí vermelho e arara, sob a tutela de Maria, que cuida de tudo sozinha. “Eu tenho que me desdobrar para colher em média cem sacas de café a cada ano. Como meu marido cuida da parte do patrão, ele não tem horário para voltar”, explica.
Para aumentar a renda de sua pequena safra, Maria investiu em concursos de qualidade. “Comecei em 2012, mas não tinha tanto conhecimento em cafés de qualidade. Fui me adaptando, me informei, e aos poucos ganhei destaque”, explica. Lá no Paraná, a fama dos cafés de Maria se espalhou quando ela conquistou o primeiro lugar no concurso estadual de qualidade do Paraná, em 2015.
“Sou a única do Paraná que tem essas premiações. Confesso que foi o acontecimento do ano!”, conta, aos risos. Ela diz ainda que cursos, treinamentos e orientação técnica foram essenciais para seu bom desempenho. A Emater, o Iapar e o subcapítulo da IWCA do Norte Pioneiro do Paraná tiveram um papel muito importante.
Do outro lado da cadeia, no comando das chamas de torradores, estão algumas mulheres garimpando café para comercializar lotes especialíssimos. Isabela Raposeiras partiu na frente com seu Coffee Lab, foi pioneira em propor diferentes perfis de torra e revolucionou o jeito de vender, pensar e consumir café. Uma nova safra de mulheres que torra está surgindo aos poucos.
Isabela Raposeiras, proprietária do Coffee Lab, em São Paulo (SP) - Foto: Café Editora
Esse é o caso de Bruna Mussolini, do Cora Café, em Santa Rita do Passo Quatro. Bruna decidiu empreender no mercado de cafés especiais e, em parceria com seu marido, inaugurou a pequena torrefação Cora Café, no interior de São Paulo. Grande parte de seu negócio é focado na valorização e no empoderamento das mulheres do café. "Eram mulheres tão interessantes, tão inspiradoras, tão diferentes umas das outras... Todas levando o trabalho da fazenda com muita competência e, na maioria das vezes, sem a devida valorização”, conta.
“Quando comecei a estudar esse mercado, notei que não havia espaço para a comercialização dos cafés”, explica Bruna. Foi por isso que a empresária decidiu buscar grãos produzidos por mulheres ou em fazendas que focam o trabalho delas, oferecendo bons salários e condições justas de trabalho.
Na outra ponta, o desafio de Gisele Coutinho, jornalista proprietária do delivery de cafés especiais de São Paulo, o Pura Caffeina, é vender os grãos para um público diverso e trabalhar a inclusão. “Recebi o convite para falar sobre mulheres negras do café em uma palestra do podcast COFFEA, em 2017. Foi nessa ocasião que comecei a questionar onde estão de fato os negros desse mercado”, conta. Em sua carta de clientes, havia apenas três negras até a data.
Essa realidade nada mais é que um espelho de nossa realidade, que não é uma exclusividade brasileira. Identificar para agir. No caso de Gisele, uma campanha para mapear consumidores e profissionais negros nessa cadeia foi feita via redes sociais. “Quando eu trouxe o assunto à tona na divulgação de minha empresa e nos workshops que faço, a mudança veio. Hoje, tenho mais clientes negros e negras e a meta é sempre diversificar e incluir todos”, conclui.
E o que fazer com os desafios e conquistas das mulheres do café que atuam fora do universo rural? A antropóloga norte-americana Sabine Parrish é natural de Seattle e foi barista por oito anos. Trabalhou na organização do evento World Barista Championship (WBC), quando se graduou, começou a estudar café a partir de metodologias antropológicas. Compreender o lado humano das relações da indústria do café é seu trabalho hoje.
Um dos destaques de seus estudos foi produzido em 2015 pela universidade de Oxford. Sexismo e Reflexões sobre Mulheres na Cafeicultura: Gênero, Economia e Concorrência nas Cafeterias Especiais dos Estados Unidos foi o tema de seu mestrado. “Entrevistei e pesquisei 423 baristas (mulheres), representando 39 estados americanos e o Distrito de Colúmbia”, explica a antropóloga. Sua principal missão era compreender as razões das competidoras serem minoria em campeonatos e terem desempenho nada satisfatório.
Ela não imaginava, porém, que reuniria verdadeiras histórias de horror em depoimentos. “Relatos de estupro, abuso de autoridade, violência física e psicológica, casos de perseguição e assédio sexual eram denominadores comum entre as entrevistadas”, conta Sabine.
Enquanto conduzia a pesquisa nos Estados Unidos, Sabine conta que recebeu muitos depoimentos informais de mulheres de diversas partes do mundo. “Esse problema não é exclusivo dos Estados Unidos e se mostra mais comum em trabalhos que oferecem baixa remuneração, independentemente da cultura, do idioma ou do país. Em minha pesquisa 54% das mulheres reportaram ter sofrido assédio sexual pelo menos uma vez por semana enquanto trabalhavam”, conclui.
Foto: Agência Ophelia
A florada que anuncia uma nova era
Elas são muitas. Presentes no campo, na cidade, na produção, no consumo e no comércio, mas faltava uma unidade. Organizar para conquistar era preciso e, por isso, em 2012, nascia o capítulo Brasil da Aliança Internacional das Mulheres do Café - International Women in Coffee Alliance (IWCA). “Atualmente, estamos organizadas em 22 capítulos entre países produtores e consumidores. O Brasil, porém, é de longe o maior do mundo e reúne muito mais mulheres”, explica Blanca Castro, a gerente dos capítulos da IWCA Internacional.
A organização sem fins lucrativos foi criada em 2003 a partir do encontro de mulheres da indústria norte-americana de beneficiamento e comercialização de café – Kimberly Eason, Karen Cebreros e Colleen Crosby – com pequenas produtoras de La Unión de Cooperativas Agropecuarias Soppexcca, da Nicarágua.
Oito anos depois no primeiro encontro realizado em São Paulo, no evento Espaço Café Brasil, promovido pela Café Editora, a IWCA nasce no Brasil. “Nossa meta sempre foi e sempre será organizar e conectar mulheres para melhorar a vida das pessoas, comunidades e famílias em todo o espectro da agroindústria do café”, explica Josiane Cotrim, da IWCA Brasil.
A comoção foi tanta em diferentes regiões do Brasil, que foi necessário criar subcapítulos. “Os problemas e demandas do Cerrado Mineiro são bem diferentes do Norte Pioneiro do Paraná, por exemplo”, explica a atual presidente da IWCA Brasil, Cintia Matos. Segundo ela, cada unidade tem independência para definir políticas, projetos e iniciativas em sua região, mas sempre responde/articula com a unidade nacional e internacional.
“Os subcapítulos é uma exclusividade do Brasil. Eu admiro muito o poder de mobilização das brasileiras, afinal, o país é muito grande”, afirma Blanca. Dividir para conquistar! Então foi assim que surgiram os nove subcapítulos: Norte Pioneiro do Paraná, Espírito Santo, Matas de Minas, Mantiqueira, Campo das Vertentes, Sul de Minas, Rondônia, Cerrado Mineiro e Bahia.
Livro destaca presença feminina
Quem são as mulheres do café? Que tipo de influência elas têm no negócio do café? Onde moram? Qual seu grau de escolaridade? As perguntas sempre estiveram lá, mas foram ignoradas até pelas mulheres do café por um bom tempo. O olhar mais crítico despertou quando dois importantes relatórios internacionais afirmaram que a presença da mulher brasileira é quase que inexistente.
Em 2012 foi lançada pela International Trade Center a publicação The Coffee Exporter’s Guide onde dizia que: “(...) mulheres fazendo muito pouco no campo e colheita no Brasil (com alto nível de mecanização e com muitos trabalhos alternativos para mulheres), enquanto na África 90% trabalham (quase tudo manual)”, afirma relatório.
Foto: Café Editora
Foi a partir desses relatórios que se notou uma falta de dados demográficos e socioeconômicos de gênero no Brasil. Nem mesmo o censo rural, datado em 2006, traz informações específicas sobre as mulheres do campo. Inconformadas com a perpetuação de dados equivocados, decidiram escrever literalmente sua própria história. “Pedimos ajuda para diversas instituições para produzir/organizar uma pesquisa colaborativa que mapeia o perfil dessas mulheres”, explica Cintia Matos.
Uma força-tarefa multidisciplinar de homens e mulheres se formou para dar voz a essas mulheres. Profissionais com perfis diferentes organizaram a primeira edição do e-book As Mulheres dos Cafés. Segundo Cristina Arzabe, PhD em Ciências Biológicas e também editora técnica da publicação, esse é apenas o primeiro passo da pesquisa.
Além dela, Josiane Cotrim Macieira, Raquel Santos Soares Menezes, Danielle Pereira Baliza e Tânia Fontenele Mourão foram responsáveis pela edição técnica, que teve mais de quarenta autores e dezessete capítulos. Segundo o prefácio do livro, “Ao abraçar o projeto idealizado pela Aliança Internacional das Mulheres do Café – IWCA Brasil, a Embrapa Café, sob a direção do Dr. Gabriel Ferreira Bartholo, mostra ao mundo a imagem de um Brasil do século XXI, onde a mulher não está mais à sombra, invisível”.
A IWCA Brasil tem feito um trabalho imprescindível para explicar esses conceitos de forma simples na zona rural e, com isso, tem registrado resultados extraordinários, como a maior qualificação dessas mulheres. “Hoje se veem muito mais mulheres trabalhando na consultoria do agronegócio, mais agrônomas em campo, por exemplo”, diz Cintia.