Se você está acostumado a tomar café em cápsula, e gosta, tem que agradecer a esta mulher. Cláudia Leite, nutricionista por formação, ostenta o título de primeira contratada pela Nespresso na América Latina, empresa suíça que levou máquinas de espresso para a casa dos brasileiros. Mineira de São Sebastião do Paraíso, uma das cidades produtoras de café no Sul do estado, ela cresceu em meio a fazendas e produtores. Mais tarde, estudou para se especializar na bebida e ensinar o consumidor do seu país a identificar grãos especiais e beber café de forma diferente do coado. Hoje, Cláudia é responsável pela área de sustentabilidade, que tem como uma das iniciativas o reaproveitamento de cápsulas.

 

Qual é a sua relação com o café?
Sempre gostei de café, principalmente por estar numa região que produz muito café e ser de uma cidade que tem o café como parte pungente da economia. Lembro-me de que quando comecei na Nespresso, nem era a minha atribuição, mas era voluntária na degustação. Sempre gostei de beber um bom café. Meu pai já trabalhou com financiamento agrícola de cafés, então esse contato com produtores veio dessa época.

Por que você escolheu estudar nutrição?
Tem grande influência o fato de ser mineira. A cozinha tem um papel fundamental na minha família. A alimentação é sempre um tema central na nossa casa, tem função celebrativa, valorizamos a boa comida. Tanto eu quanto a minha irmã escolhemos nutrição na atuação profissional, apesar de cada uma ter ido para uma área diferente. Ótimo sinal de que algo em casa nos ajudou a tomar esse rumo.

Qual era o seu plano de carreira?
Sempre olhei a comida de forma muito transformadora, quase poética. Quando você oferece alimento ou bebida para alguém, tem a questão de levar bons nutrientes, mas vejo muito os aspectos emocional e cultural. Isso reflete o que somos e em que acreditamos, um legado que vem da história da nossa família. Sempre fui mais para o lado humano que o lado químico da nutrição. A relação do homem com a comida sempre me seduziu, tanto que um dos projetos lá na USP era pesquisar a população de ribeirinhos que comem turu, conhecido como bicho-de-pau-podre.

Antes do café, você teve contato com a manteiga. Como foi esta primeira experiência?
Estudava em São Paulo e voltava para Minas no período de férias. Por sede de conhecimento, no meu primeiro dia de férias da faculdade falei com o meu pai: não quero ficar em casa, o que tem para fazer?. Na minha cidade, tem café, curtume ou a Laticínios Aviação. Meu pai conversou com o dono da empresa e com a engenheira química e eles falaram que não tinham programa de estágio, mas eu queria me voluntariar. Nessa época, fui entender de controle de qualidade do leite – descobri que não tem como ter manteiga de qualidade se você não tiver um leite de qualidade – e de conexão com os produtores. Foram três meses de estágio voluntário.

Como o café entrou na sua vida profissional?
Comecei a trabalhar pouco antes de me formar como nutricionista na cozinha experimental da Nestlé. Lá trabalhava com desenvolvimento de novos produtos para empresas. Um dos projetos daquela época era o McCafé. Participei de toda a parte da definição do que seria o blend do café, os itens do cardápio e também como poderia ser a gestão da cafeteria. Isso foi em 1997. Acabei me voluntariando para participar das degustações de café. Depois de 10 anos em que estava na Nestlé, já tinha trabalhado como gerente de produto, de marketing, e estava em busca de outros desafios, surgiu o convite da Nespresso, que é uma unidade de negócios do Grupo Nestlé, para participar de um processo seletivo. Não tinha ninguém no Brasil, fui a primeira funcionária da América Latina. Senti que estava entrando para a CIA de tantos sotaques diferentes que ouvi durante as entrevistas. Tinha sueco, francês, suíço e indiano.

Na sua opinião, o que foi mais decisivo para você ter sido escolhida para a vaga?
Claro que contou a experiência que tinha no relacionamento com chefs de cozinha, restaurantes e hotéis, mas o que me colocou em posição diferente foi a minha familiaridade com o café. Quando os gringos me perguntavam “você conhece café?”, eu respondia: sim, praticamente nasci numa fazenda de café. Era quase uma curiosidade da minha história, mas acho que isso me colocou em posição de destaque. Quando assumi o cargo de gerente de hotéis e restaurantes no Brasil, não tinha mais ninguém. Meu chefe foi contratado dois meses depois. Não tinha o que fazer, então fui estudar, ler um monte de coisas. Como poderia conversar com baristas e chefs se não conhecesse café? Comecei a preparar treinamentos, que nem eram da minha área. Isso antes mesmo de abrirmos a primeira butique. Como ainda estava esperando tudo começar, me sugeriram fazer um estágio na Áustria, país bastante maduro na área de hotéis e restaurantes. Falei “tudo bem, mas quero fazer um curso na escola de barismo de Viena”, que é uma das mais importantes no mundo. Fiz por minha conta. A Nespresso começou efetivamente em dezembro de 2006. Lembro-me de que acabei sendo treinadora dos quatro primeiros colaboradores que iam atender nas lojas. Chegou um momento em que, além da estratégia para entrar em restaurantes e hotéis, cuidava do programa de integração.

Então, nesta época, você já estava bem familiarizada com o café.
Achei que estava até ir à primeira reunião de cliente, em um grande hotel. Levei a máquina debaixo do braço com as cápsulas. Tudo o que sabia era que espresso deveria ser degustado sem açúcar. Café espresso tem duas fases: líquido e espuma (que chamamos de crema). O chef pegou duas colheres de sobremesa de açúcar e colocou em cima do café. Olhei aquilo e não entendi. Ele, italiano, conhece tanto de café, o que está fazendo? Ele estava fazendo um teste de qualidade. É o que chamamos de teste de açúcar para café. A crema tem que ser tão densa, com bolinhas tão fortemente ligadas, que, mesmo se colocar açúcar por cima, ela tem que segurar por cinco segundos. O chef queria mostrar que o café não era bom, só que o café segurou o açúcar por mais de 10 segundos. Aí ele perguntou: que café é esse?. Depois que fui para a Suíça, na fábrica, descobri que aquele era um dos testes realizados para ver a qualidade do café. Ali o produto falou mais do que qualquer argumento. Depois fiz mestrado na USP sobre análise sensorial de café, na área de saúde pública.

Em qual momento você se apaixonou verdadeiramente pelo mundo do café?
Em 2008, fizemos um encontro aqui no Brasil de produtores de café. Eram 130 pessoas do país inteiro. Foi nossa primeira viagem a fazendas, conheci muitas histórias e isso me abriu muito mais a perspectiva do que estava dentro da xícara de café. Não é só o que é produzido, mas como é produzido. Perguntei para um produtor: você acha que fez diferença ter trabalhado com a Nespresso?. Aí ele me respondeu: ‘Vixi’. Foi ali que entendi o meu propósito, isso começou a dar mais sentido para o que fazia.

O brasileiro estava mais acostumado com café coado. Como foi apresentar o café de máquina?
Vou dar dois exemplos, um pessoal e outro profissional. Quando estava no processo seletivo da Nespresso, levei para o meu pai uma máquina e cápsulas. Ele olhou e disse: ‘Café de pastilha, não cheira a café’. Expliquei: na hora que fizer ele vai liberar os aromas. Aprendi muito com o meu pai, era preciso encontrar o jeito certo de apresentar o produto. Voltando para o outro exemplo, de nada adiantaria uma excelente campanha se as pessoas não percebessem na xícara que era um produto diferenciado, e foi o que mais fizemos. A gente convidava baristas, chefs e maîtres para degustações, às vezes de diferentes maneiras. Na xícara, o produto se apresentou e mostrou que tinha muito potencial.

Vemos hoje uma busca por pequenos produtores e marcas locais. Como uma multinacional pode acompanhar os desejos do consumidor?
De nada adianta o produtor ter produto de qualidade se não tem quem consuma e a Nespresso segue contribuindo para o desenvolvimento deste mercado de cafés especiais, que tem crescido. Há um trabalho de gerar experimentação e fazer o consumidor entender que existem diferentes cafés. A marca teve papel importante na descoberta e valorização da bebida. O ideal é consumir sem açúcar, mas temos que respeitar as preferências, porque café é um momento de prazer. Ainda que o mercado de cápsulas seja pequeno – a Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) diz que representa menos de 1,5%, temos muito para crescer no Brasil. Se for para beber café, que seja bom.

Qual é a origem dos cafés utilizados pela Nespresso?
Adquirimos café de 13 países diferentes, como Guatemala, México, Quênia, Etiópia, Índia e Indonésia. Mas o Brasil é o maior produtor e maior fornecedor do mundo, por isso tem café brasileiro em todas as cápsulas.

Por quantas áreas você já passou na empresa?
Comecei por hotéis e restaurantes, passei por negócios corporativos na área comercial, depois fui convidada para cuidar das butiques, o nosso formato de varejo. Em seguida, fui convidada para a área de cafés no Brasil. Lembro-me de que cheguei para o diretor e perguntei: qual é esta função, cadê a descrição do cargo?. Ele respondeu: ‘Pode descrever’. Foi a primeira e única vez que aconteceu isso comigo. Apresentei para o meu chefe da Suíça o que esperava desta área e ele falou que parecia bem correto, estava bastante alinhado com o que ele estava pensando. Na época, não tinha ninguém fazendo isso no mundo. Hoje, mais de 40 países trabalham com esta área e muito deles vieram se formar aqui no nosso país, visitar cafeterias, fazendas e entender a cultura cafeeira. O objetivo da área é alavancar cultura do café, fazendo com que as pessoas conheçam e valorizem e isso passa por degustação, treinamento, eventos, visitas a fazendas. Aí me tornei porta-voz da companhia para falar mais do café, em diferentes vertentes. Depois assumi a área de sustentabilidade e reciclagem (existiam muitas ações, mas elas não estavam dentro de um único guarda-chuva no Brasil) e a área de comunicação corporativa.

Como a empresa lida com o descarte das cápsulas?
Hoje temos no Brasil mais de 100 pontos de coleta, 29 são nossas butiques, onde está concentrada a maior parte dos clientes, mas temos outros parceiros. Trabalhamos por logística reversa. As cápsulas vêm para o centro de reciclagem, que fica na região metropolitana de São Paulo, e lá separamos mecanicamente o pó de café do alumínio. Ali conseguimos dar o destino ambientalmente correto para cada um deles. O pó de café vai ser compostado e vira adubo orgânico, o alumínio vai para a indústria virar outros produtos, como peças de bicicleta e esquadria. Na Suíça, onde ficam as nossas fábricas, as cápsulas que são coletadas voltam a ser novas cápsulas.

Como é ser uma líder mulher em uma grande empresa?
Não tinha me atentado para isso, a gente faz pelo propósito. Ouvia falar de liderança feminina, mas não tinha me atentado de que estava inspirando outras pessoas. Hoje entendo que precisamos falar mais disso no campo. Estamos com um trabalho de levar este olhar para nossos produtores e agrônomos. Hoje, falar sobre feminino é interessante, está na crista da onda, mas não necessariamente estamos praticando. As pessoas precisam ter voz. Às vezes, até para virar uma abordagem comercial, os produtores colocam a fazenda no nome da mulher porque é bacana, mas se ela não tem voz nem vez na fazenda não é verdade, e tem que ser verdade. Entendi a minha responsabilidade em ter influência boa para as pessoas. Não estou dizendo que não exista no mercado, mas nunca senti dificuldade por ser mulher. Creio que a minha carreira se desenvolveu de acordo com as minhas escolhas.

Como conciliar carreira e família?
A gente nunca sabe como. Passo pelo desafio da agenda, de conseguir dar conta de tudo, de me sentir um pouco frustrada em não dar conta, mas não sou heroína. Tenho procurado achar este equilíbrio, mas não encontrei. Quem souber como, me conta. Eu agradeço.

Quais são seus planos?
Temos metas de sustentabilidade para 2020, mas não basta olhar para dentro das nossas operações. Estamos assegurando que a sustentabilidade tenha uma atuação mais transversal, não só olhar para dentro. Ambiciono muito que a empresa possa cada vez mais servir de inspiração para outras empresas. No meu dia a dia, olho para o meu entorno, adotando a praça na frente da casa ou catando lixo no meu bairro. São pequenos gestos para garantir que todos vivam em um mundo melhor.

Fonte: Estado de Minas (Celina Aquino)

Cláudia Leite Nestle