A Fazenda Três Meninas, do engenheiro agrônomo Marcelo Cocco Urtado, de 48 anos, localizada em Monte Carmelo (MG), é um exemplo de harmonia entre produção agrícola e meio ambiente.
Urtado emprega práticas da chamada agricultura de baixo carbono (ABC), que visa contribuir para a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE), diminuir o aquecimento global e limitar o aumento da temperatura global em 1,5 °C até 2100.
Ele é associado da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado Monte Carmelo (Monteccer), que congrega o primeiro coletivo de cafeicultores do Brasil a conquistar a certificação socioambiental Rainforest Alliance na modalidade grupo, em 2007. Agora, a cooperativa celebra um novo feito histórico, relacionado à sustentabilidade da produção.
Um estudo encomendado ao Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) calculou quanto as plantações emitem de gases e analisou os manejos que mais sequestram CO2, seja pelas plantas ou pelo solo. “Olhamos para as práticas que vão influenciar num balanço cada vez mais positivo”, resume Renata Fragoso Potenza, coordenadora da área de clima e cadeias agropecuárias do Imaflora.
O resultado foi surpreendente. As 34 propriedades que participaram do inventário têm uma emissão de 4,02 toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por hectare ao ano – muito menor que a média global de emissão de fazendas cafeeiras, que é de 28 tCO2e/ha/ano. E mais. O balanço de emissões desse grupo de cafeicultores foi negativo: -5,66 tCO2e/ha/ano.
Em outras palavras, elas sequestram mais CO2 do que emitem, segundo o estudo, que adotou a metodologia do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC) num ciclo de 20 anos de cultivo. O reflexo das boas práticas na produtividade das lavouras será conhecido nas próximas colheitas, mas sabe-se que de imediato há uma redução nos custos, principalmente com químicos.
A Três Meninas é uma joia rara que se destaca na vizinhança. A propriedade é toda arborizada, com plantio alternado de casuarina e hibisco acompanhando a cerca. Árvores nativas se espalham pelo meio e no fim da fazenda. Muito mais que atender às exigências do Código Florestal e da certificação ambiental, a arborização faz parte do manejo da produção.
“As árvores melhoram o microclima e fazem uma barreira de vento, que diminui a evapotranspiração. Usamos menos água e reduzimos os gastos com energia, por irrigar menos”, diz Urtado.
Marcelo Cocco Urtado cultiva café em Monte Carmelo (MG) (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
As práticas regenerativas – como tem sido chamado o manejo que une as boas técnicas agrícolas do passado com as descobertas e inovações do presente para uma agricultura de baixo carbono – dão o tom dos cuidados na lavoura, que estavam exauridas quando Urtado comprou a fazenda, em 2016.
Entre as linhas dos 40 hectares de cafezais, ele planta forrageiras. No verão, semeia o trigo mourisco e o milheto ADR300 em ruas alternadas. No inverno, substitui por nabo forrageiro. Nada é por acaso, cada escolha tem um porquê.
O agrônomo chegou a fazer cotação de aluguel de colmeias de abelhas para ajudar na polinização. Mas optou por semear o trigo mourisco, que naturalmente atrai esses insetos.“O trigo também é o hábitat do criso-pídeo, inimigo natural do bicho-mineiro, uma das principais pragas dos cafezais no Cerrado mineiro. E atrai a vespa que combate a broca-do-café (inseto que ataca o fruto e causa que da na produção e na qualidade)”, explica Urtado.
O milheto, por sua vez, reduz os nematoides, vermes presentes no solo que prejudicam a produtividade das lavouras. Já o nabo forrageiro tem raízes grossas, que ajudam a arejar e descompactar a área, facilitando a infiltração da água quando chove.
A combinação de forrageiras funciona ainda como adubação verde. Quando roçadas, os nutrientes presentes nas partes aéreas das plantas retornam para o solo, diminuindo a necessidade de adubos nitrogenados, que são os vilões da emissão de GEE.
Só para se ter uma ideia, as principais fontes na pegada de carbono da Monteccer foram: fertilizantes nitrogenados (57, 3%), calagem do solo (14,9%), uso de combustível fóssil(14,6%) e decomposição dos resíduos da poda (13,2%).
Hoje, a Fazenda Três Meninas faz uma adubação combinada: fertilizantes orgânicos (adubação verde, compostos e estercos) e biológicos. “Nós preconizamos os insumos da agricultura orgânica”, diz Urtado, que é arborista certificado.
O defensivo químico é usado quando muito necessário. Inclusive, a propriedade zerou a aplicação de herbicidas. A resolução foi decorrência do projeto Lucro Vivo, desenvolvido em um talhão em parceria com a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), campus de Monte Carmelo (MG).
“Fizemos um manejo para sincronizar a florada ecolher um pouco mais cedo”, diz Urtado. Isso diminuiu a quantidade de grãos que caem no chão durante a colheita, o chamado café de varrição, principal dificuldade para zerar o uso de herbicidas.
Normalmente, o produto é utilizado próximo à colheita, para dessecar as forrageiras, o que facilita o aproveitamento do café que cai na terra. Não usar o herbicida atrapalha a varrição, mas é possível. “Meu foco é ter uma lavoura equilibrada, o que reduz a necessidade de insumos químicos, economiza água, energia e produz um pouco mais, diminuindo meu custo por saca.”
Na Fazenda Letícia, o conservacionismo está no DNA da família.Tocada pelo casal Márcia Yoshimi Aoki Takiuti, de 55 anos, e Max Kend Takiuti, de 63, a propriedade de 110 hectares tem mais de 33% da área coberta por reserva legal (RL) e áreas de preservação permanente (APPs). A porcentagem é muito além do que a legislação exige, mas os Takiuti não se cansam de plantar árvores.
“Recentemente, adquirimos mudas de ipê e de ingá para arborizar a cerca de divisa da fazenda”, diz Márcia. Mais do que embelezar, as árvores favorecem a produção cafeeira. Segundo a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), o néctar das flores do ingá atrai os inimigos naturais que combatem a broca e o bicho-mineiro, as principais pragas do café.
Na lavoura, tudo é pensado para otimizar os insumos utilizados. Takiuti, inclusive, desenvolveu uma ferramenta, uma espécie de bico de pato, que vai acoplado ao esguicho que faz a aplicação de inseticidas no solo.
“Esse implemento limpa as folhas do terreno e o produto cai direto na terra, dando um melhor resultado”, diz ele. São detalhes, ajustes finos, que influenciam no balanço de carbono da propriedade. Segundo o Imaflora, a Fazenda Letícia é carbono negativo, sequestra mais CO2 do que emite. As emissões por saca de café produzido são de -0,10 tCO2e/ano.
Márcia Yoshimi Aoki Takiuti e Max Kend Takiuti comandam a Fazenda Letícia (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
Outro foco de atenção da Monteccer são as práticas que otimizam o uso dos recursos hídricos. “Água é o gargalo produtivo do Cerrado, a região não produz sem água”, afirma Oséias Mendes, coordenador de projetos do Imaflora.
No caso do cafeicultor Francisco Sérgio de Assis, de 58 anos, presidente da cooperativa, mais conhecido como Serginho, ele vem substituindo os pivôs centrais por irrigação de gotejamento. Já chegou a ter cinco pivôs, hoje tem apenas um.
É uma questão de sustentabilidade, porque a água está cada dia mais escassa. Se não preservarmos as nascentes, se não fizermos reflorestamento na beira dos rios, se não utilizarmos água de maneira racional, uma hora vai faltar
Francisco Sérgio de Assis, cafeicultor
A troca dos equipamentos de irrigação resulta em uma economia considerável. “Quando comecei a irrigar (com pivô central), gastava 3 millitros de água por dia por aspersão. Hoje, o consumo fica entre 800 e 1.000 litros ao dia por gotejamento”, explica o presidente da Monteceer, proprietário da Fazenda Terra Rica,de 630 hectares de cafezais.
Mas os ganhos não param por aí: o gotejamento traz outros benefícios. Como método, o produtor faz a fertirrigação, que otimiza o uso de adubos, reduz a entrada de maquinário na lavoura, diminui o gasto com diesel e ajuda na conservação do solo, uma vez que a passagem constante de pneus pode compactar o terreno.
Francisco Sérgio de Assis, cafeicultor (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
Além do capítulo sobre carbono, o novo estudo do Imaflora aborda temas como água, solo, manejo, eficiência operacional, resíduos, custos de produção, aspecto social e biodiversidade. “Uma das descobertas foi que muitos produtores não sabiam que o solo é o grande estocador de CO2”, diz Mendes, que foi a campo coletar os dados para o diagnóstico.
Apesar do desconhecimento, a maioria dos cafeicultores já adota práticas conservacionistas, que são incentivadas pela liderança, como é o caso de Serginho. “O estudo identificou vários fatores que ajudam a sequestrar o carbono: o manejo do mato, a adubação via água, que diminui a volatilidade do nitrogênio. Agora vamos lapidar, para aumentar o sequestro.”
Por sinal, o manejo de forrageiras entre as ruas do café foi algo que a reportagem da Revista Globo Rural presenciou em todas as propriedades visitadas. A prática mais comum é o plantio de braquiária, gramínea de raízes profundas que ajuda na ciclagem de nutrientes, aumenta a matéria orgânica do solo e mantém a temperatura mais amena. Os produtores roçam rua sim, rua não, uma técnica para as pragas terem onde se alojar.
Se antes o habitual era fazer até quatro aplicações de herbicidas, hoje eles fazem no máximo duas na proximidade da colheita, a fim de facilitar a coletado café que cai no chão. “Quanto menos herbicida, menos compactado será o solo, o que contribui para o aumento do sequestro de CO2”, diz Mendes.
Mudas (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
E as mudanças não param por aí. A utilização de controle biológico de pragas e doenças é uma tendência que ganha a cada dia mais musculatura no Cerrado mineiro. É o caso do agrônomo Luiz Augusto Pereira Monguilod, de 52 anos, proprietário de duas fazendas de café em Monte Carmelo.
Ele passou a adotar o controle natural há três anos e, este ano, investiu R$ 350 mil na construção de uma biofábrica, unidade que multiplica fungos e bactérias na própria fazenda, para baixar os custos dos microrganismos. “Minha meta é reduzir em 50% a aplicação de defensivos. Este ano, já consegui diminuir 35%”, diz.
Com 15 anos dedicados à indústria de agroquímicos, Monguilod hoje acredita que o uso de agentes biológicos será responsável por um novo salto de produtividade na agricultura. Ele não é contra o uso de insumos químicos, mas defende o manejo integrado de pragas (MIP), que integra os produtos químicos aos biológicos. “Meu objetivo é o equilíbrio. Com um solo mais equilibrado, uma planta mais equilibrada, você reduz a pressão de pragas e doenças.”
Luiz Augusto Pereira Monguilod, dono de fazendas de café (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
Outra inovação testada nas últimas quatro safras e aprovada pelo agrônomo foi um experimento de irrigação com água eletromagnetizada, em parceria com a Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O resultado foi impressionante.
“No sistema de irrigação eletromagnetizada, com a mesma quantidade de água que costumava usar, tive um aumento de produtividade que oscilou entre 5 e 8 sacas por hectare”, diz Monguilod.
Isso porque a água eletromagnetizada é mais facilmente absorvida pelas plantas. “Nesse experimento, utilizando 25% de água a menos, mantive a produtividade que tinha nas áreas sem irrigação eletromagnetizada”, conta.
Agora o produtor planeja expandir a tecnologia para todas as fazendas. O inventário de emissões de carbono desses 34 cooperados da Monteccer foi concluído no ano passado. “Muitos falam em agregar valor, nós queremos criar valor”, afirma o presidente da cooperativa, que vai disseminar as práticas regenerativas com todos os 136 cooperados, não só com os participantes do balanço pioneiro.
Já o Imaflora pretende replicar o estudo em outras regiões para entender que tipo de manejo mais impacta cada localidade. O resultado do estudo não podia ter chegado em melhor hora. Ele antecedeu uma série de anúncios de gigantes do setor.
A Nestlé comunicou que vai zerar a emissão de GEE até 2050. Já a Nespresso, marca premium de café expresso da transnacional suíça, assumiu um compromisso mais ousado: será carbono neutro até 2022.
“O plano vai ser não só contar com os créditos de carbono gerados nos projetos de plantio de árvores (em regiões de cafeicultura), mas investir em compra de créditos de carbono de programas offset (externos)”, diz Guilherme Amado, líder do programa Nespresso. Até 2030, a marca quer neutralizar suas emissões apoiando projetos como o caso da Monteccer.
Nesse mesmo movimento, a torrefadora italiana Illy vem patrocinando pesquisas em “agricultura virtuosa”, que é como eles têm chamado as práticas de cafeicultura regenerativa que favorecem o sequestro de carbono.
Mais do que um alinhamento com os objetivos de desenvolvimento sustentável, essas empresas estão preocupadas com sua sobrevivência. Estudos sobre o efeito das mudanças climáticas na cafeicultura apontam que, se houver um aumento de 4 ºC na temperatura até 2100, as principais regiões produtoras de café arábica no Brasil se tornariam inaptas.
Sacas de café do Cerrado Mineiro (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
Como ganhar dinheiro com o crédito de carbono gerado? A resposta a essa pergunta é o que todos os cafeicultores nacionais querem saber, afinal, o Brasil é o maior produtor mundial do grão e o segundo maior consumidor da bebida. Só para se ter uma ideia, segundo o último censo agropecuário do IBGE, o país tem 265 mil cafeicultores, que, no ano passado, colheram uma safra recorde de 63 milhões de sacas beneficiadas de cafés arábica e conilon.
Em termos de exportação, o Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé) acabou de divulgar que o Brasil bateu um novo recorde. Em 2020, foram enviados ao exterior 44,5 milhões de sacas de café, dos quais 7,9 milhões foram de grãos diferenciados, aqueles que são classificados como de qualidade superior ou têm algum tipo de certificado de práticas sustentáveis.
Nesse contexto, o coletivo formado pelos 34 cooperados da Monteccer – que participaram do estudo pioneiro sobre o balanço de carbono na produção de café arábica – se destaca. Segundo estimativas globais, os cafeicultores do grupo estão na fatia dos 5% mais eficientes do mundo noque se refere aos GEE lançados na atmosfera. A média global de emissão é de 28 tCO2e/ha/ano, já os produtores da Monteccer não ultrapassaram 4,25 tCO2 e/ha/ano.
No entanto, no momento, isso não resulta em retorno financeiro para os agricultores. Por ora, os benefícios são indiretos. O cafeicultor Luiz Monguilod está usando a informação no marketing de vendas da empresa de comércio de café que possui na Holanda.
Já os demais ganham a preferência das empresas na aquisição da mercadoria que – além da certificação socioambiental – é proveniente de lavouras carbono negativo. “Estamos fazendo a parte ambiental e social da sustentabilidade, mas a perna econômica precisa vir das exportadoras, que compram o café”, diz Francisco Sérgio de Assis, presidente da Monteccer.
Ter um projeto no mercado de carbono voluntário e regulado, que certifica e gera os créditos, é uma trajetória longa e de custo elevado, por envolver uma série de auditorias. Provavelmente, iniciativas como o balanço da Monteccer consigam um retorno financeiro nos chamados projetos inset, dentro da própria cadeia.
A Nespresso, marca premium de café da Nestlé, sinaliza que isso deve ser implementado até 2030. Num primeiro momento, até 2022, para compensar as emissões de GEE, a empresa irá comprar créditos de carbono de programas offset, externos. Mas de 2022 até 2030, a meta é mais ousada.
Guilherme Amado, líder do programa Nespresso AAA de Qualidade Sustentável (Foto: Anna Carolina Negri/Editora Globo)
“Não poderemos mais comprar créditos offset, vamos precisar reduzir significativamente as emissões e, se precisarmos comprar créditos, terá de ser de projetos dentro da operação”, diz Guilherme Amado, líder do programa Nespresso AAA de Qualidade Sustentável, que hoje conta com 1.161 cafeicultores brasileiros fornecendo para a marca.
As métricas e metodologias que serão usadas pela Nespresso em tais projetos internos estão sendo definidas com os parceiros da empresa. Mas não necessariamente essas iniciativas precisarão de auditorias, uma vez que a companhia tem uma equipe de assistência técnica com 15 profissionais, que estão sempre nas fazendas.
“Nesse caso, os programas inset podem ser uma alternativa mais viável para o produtor gerar créditos sem ter um custo elevado”, afirma Renata Fragoso Potenza, coordenadora da área de clima e cadeias agropecuárias do Imaflora.
Fonte: Revista Globo Rural (*Publicado originalmente na edição 423 da Revista Globo Rural – Fevereiro/2021)